terça-feira, 3 de maio de 2016

Para Leicester, com amor

Dois amigos Sikhs conversam no Leicester Market
Imagino que enquanto escrevo alguns milhares de moradores de Leicester devem estar tentando curar uma terrível ressaca, depois da comemoração pelo título inglês conquistado ontem. Há quase três anos eu estive por lá, uma típica cidade de patamar médio no Reino Unido, encravada nas East Midlands, bem no meio da maior ilha britânica. Nesse caso, talvez o que Leicester tenha de interessante seja justamente isso - não tem nada demais -, o que torna ainda mais inacreditável o acontecimento que a BBC qualificou como “fairytale football” (futebol de conto de fadas).
Preciso confessar que a minha ida a Leicester teve uma motivação bastante prosaica. Logo que cheguei à Inglaterra fui atrás de um novo telefone celular. Depois de alguma pesquisa, descobri que para funcionar no Brasil, no meu retorno, o smartphone da marca escolhida teria que ser “desbloqueado”, o que só podia ser comprado nos estabelecimentos próprios da fabricante. Derby, a cidade em que eu fiquei durante um ano, não tinha nenhuma dessas lojas. Uma rápida consulta à internet mostrou que a mais próxima ficava em Leicester, 40 quilômetros distante dali.
Depois de pouco mais de uma hora de ônibus, encontrei em Leicester a mesma miscelânea entre culturas imigrantes da África, Ásia e do Leste Europeu de Derby, britanicamente amalgamadas pelos pubs e casas de apostas, tão comuns por todo o Reino Unido. Falando nisso, a conquista do Leicester era tão improvável no início do campeonato que os bookers pagavam 5.000 libras para cada pound apostado no time. Como por lá é possível arriscar dinheiro em qualquer coisa mesmo, essa é a mesma taxa de retorno para quem apostar na descoberta do monstro do Lago Ness ou no reaparecimento de Elvis Presley – vivo, é claro.
O prejuízo causado às casas de jogo pela vitória do Leicester na Premier League foi calculado em cerca de 20 milhões de libras, cerca de R$ 103 milhões. Para tentar amenizar as perdas, algumas delas começaram a procurar os apostadores, oferecendo recomprar o possível tíquete premiado antes do fim do torneio. A Ladbrookes, uma das maiores redes, anunciou ter pago 72 mil libras (R$ 374 mil) a um desses malucos, que tinha casado 25 libras (R$ 130) na vitória do time - caso o absurdo fato se confirmasse, ele teria direito a embolsar 225 mil libras (R$ 1,2 milhão). Certamente ele deve estar arrependido...
Interior da Leicester Cathedral, que hoje abriga os ossos de Richard III
Leicester foi castigada para valer pelos bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial e a reconstrução não foi exatamente bem planejada – ao andar pela cidade você vê alguns viadutos horripilantes, construídos para acomodar o trânsito dos automóveis. Na região central, porém, tanto o Guildhall (um edifício do século XIV que abrigava a prefeitura medieval) quanto a catedral estão bem preservados, um do lado do outro, no calçadão reservado só para pedestres.
Hoje a catedral abriga os restos mortais de Richard III, morto em 1485 logo ali nas cercanias da cidade, na Batalha de Bosworth, o combate decisivo da Guerra das Rosas, que marca o fim da Idade Média na Inglaterra. Os ossos dele permaneceram desaparecidos por séculos, até que em 2012 uma escavação em um estacionamento de Leicester encontrou o esqueleto do último monarca plantageneta, a quem Shakespeare dedicou uma peça inteira.
Quando eu estive por lá os ossos do rei ainda eram motivo de uma disputada judicial entre a cidade de Leicester e seus descendentes distantes, que queriam levar o que restava dele para York, a sede da sua casa real no século XV. Em 2014, porém, a Justiça deu vitória a Leicester, que via nos restos mortais da sua figura mais conhecida uma boa chance de atrair mais visitantes. É claro que isso foi antes do surgimento de personagens tão atraentes como o atacante Jamie Vardy, um ex-operário de Sheffield que se tornou jogador de futebol. Aos 28 anos, nessa temporada ele marcou gols em cada uma das 11 primeiras partidas disputadas pelo Leicester na liga, quebrando o recorde do holandês Ruud van Nistelrooy – e de quebra alcançando a Seleção Inglesa.
Guildhal, de onde a cidade era comandada no período medieval
Só a partir dos anos 60 é que Leicester começou a receber o volume maciço de imigrantes que deu à cidade o aspecto atual, em especial trabalhadores da Índia e do Paquistão, em busca de trabalho nas indústrias têxteis da região. A marca deles está bem viva na cidade, em especial na chamada Golden Mile, nome pelo qual é conhecida a Belgrave Road, uma rua que fica cerca de um quilômetro e meio ao norte do centro, onde restaurantes de culinária do subcontinente indiano alinham-se quase um ao lado do outro.
Fui até lá e almocei em um deles, o Bobby’s, onde me serviram uma condimentada sequência de iguarias indianas, todas vegetarianas, acompanhada do tradicional pão sem fermento. A história do local resume a combinação de sofrimento e esperança que impulsiona qualquer imigrante. Expulsa de Uganda pela terrível ditadura de Idi Amin em 1972, a família Lakhani buscou refúgio em Leicester. Deparando-se com a crescente colônia de asiáticos vindos do leste da África e conhecedor das habilidades culinárias da esposa, Manglaben, o senhor Bhagwanjibhai decidiu abrir um restaurante.
Comida indiana de primeira no Bobby's
Para dar nome ao local, ele escolheu o título do seu filme favorito de Bollywood (Bobby), que conta a ancestral estória de amor entre um garoto rico e uma moça pobre, estrelado por Rishi Kapoor e Dimple Kapadia. Quando estive lá o restaurante já tinha sido assumido por uma filha do casal, que me contou parte dessa estória.
Na minha visita, em 2013, o Leicester disputava a segunda divisão inglesa, de onde subiria com méritos naquela mesma temporada, conquistando o título da chamada Championship com algumas rodadas de antecipação. Quem em sã consciência poderia sonhar, ainda mais naquela época, que dentro de três anos o time levantaria o troféu da Premier League, sob o comando de um treinador italiano considerado o grande azarado da Europa? Mal comparando, é como se no o Avaí ganhasse o Brasileirão, treinado pelo Jair Picerni...
Pensando bem, talvez seja justamente essa a razão da simpatia que o Leicester desperta em tanta gente - ver um sonho improvável transformado em realidade renova as esperanças de qualquer mortal. Afinal, se um imigrante indiano escapou de um ditador e conseguiu se estabelecer na Inglaterra como dono de restaurante, um apostador ficou milionário em troca de um punhado de moedas entregues ao booker e até os ossos de um personagem sheakespereano foram descobertos enterrados em um estacionamento, o que pode me aguardar atrás da próxima esquina?

quarta-feira, 11 de junho de 2014

É só o fim

Helsinki, vista da torre do Estádio Olímpico
“Se o chão abriu sob o seus pés e a segurança sumiu da faixa
Se as peças estão todas soltas e nada mais encaixa
Ô, crianças, isso é só o fim, é só o fim”
Só o Fim, Camisa de Vênus

Tudo tem um fim. Nem que seja aparente, provisório ou só mesmo uma ilusão. O final da minha jornada não podia ser em um lugar mais simbólico: onde é que as coisas têm fim? Na Finlândia, é claro. O mundo pode não acabar ali, mas bem que parece...
A travessia de Tallinn para Helsinki, a capital finlandesa, é feita de barco – na verdade um belo transatlântico, com cabines, restaurantes, bares e até cassino. O trecho leva duas horas e meia e você mal sente o movimento do navio. No desembarque, me vejo cercado pelos passageiros arrastando aqueles carrinhos de feira, com caixas e mais caixas de cerveja, cidra ou vinho empilhadas umas sobre as outras. Eu entenderia a razão disso mais tarde, ao pisar no primeiro bar.
Para começar, na Finlândia não se vende bebida alcoólica de nenhum tipo após as 21h, em supermercados ou lojas de conveniência. Depois desse horário, só nos bares e restaurantes, onde um pint da cerveja mais barata custa mais de cinco euros – eu disse a mais barata, há as que saem por seis, sete, oito euros... Mesmo no mercado, os impostos draconianos cobrados pelo governo sobre as bebidas para tentar combater o alcoolismo fazem com que uma lata de cerveja não custe menos do que dois euros.
Finlandeses carregados no ferry vindo de Tallinn
Assim, como os argentinos cruzam o Rio da Prata para sacar todos os dólares disponíveis nos caixas eletrônicos de Colônia de Sacramento, no Uruguai, os finlandeses atravessam o Báltico e trazem da Estônia (onde os preços são menos da metade dos praticados em Helsinki) o máximo de bebida que conseguem carregar.
Desembarco na capital finlandesa em um ensolarado e quente sábado à tarde e as ruas estão cheias de gente bebendo. Mais tarde, já no início da noite – clara como o dia –, vejo dezenas de adolescentes com um chapeuzinho de marinheiro na cabeça (meninos e meninas), entornando como se se não houvesse amanhã.
Não me pareceu que a política anti-álcool esteja funcionando muito bem...

No caminho para o meu hotel paro na feira em frente ao porto para almoçar. Não havia lugar para sentar na barraquinha, lotada, então recolho meu prato de plástico com uma generosa porção de salmão assado e vegetais e vou me acomodar encostado a um poste, em frente ao mar.
No caminho já achei que seria atacado. Elas apareceram em grupo, alternando-se em aproximações mais temerárias. Quando consigo sentar, a líder assume a posição frontal, afastando as concorrentes com gritos estridentes e ameaças de bicadas. E ali ficou, me olhando com cara de cachorro pidão.
No começo a gaivota não chegava muito perto, mas depois que joguei o primeiro pedaço de batata para ela, aos poucos a fome foi superando o medo. No final, já estava pegando os pedaços de salmão da minha mão (sim, tenho o coração mole mesmo...), e só não lambeu os meus dedos porque acho que a língua dela não consegue sair do bico.

A gaivota com olhar de cachorro pidão
Chego ao hotel – na verdade um albergue -, e a surpresa não é das melhores. A localização não era ruim, na ilha de Katajanokka, uns 20 minutos de caminhada da estação central de trem. Mas as vantagens acabavam por aí.
O albergue ocupava um prédio inteiro, com os quartos alinhados ao longo de compridos corredores, nos cinco andares. O meu lembrava bastante uma cela daquelas que aparecem nos filmes britânicos dos anos 70, um catre de metal, uma mesa e uma cadeira, um pequeno armário e uma janela que, se não tinha grades, abria só meio palmo, lateralmente.
Os banheiros, coletivos, eram um caso à parte. Os chuveiros ficavam alinhados um ao lado do outro, separados em baias. Para fazer sair água, é preciso tocar no sensor, aproveitar a ducha por alguns segundos, até que ela para automaticamente – e você tem que voltar a acionar o sensor.
Inacreditáveis mesmo eram os toaletes... A trilha sonora para se fazer o que tem que ser feito é o constante trinar de... passarinhos! Tinha até um cuco. O pior é que as cabines não tinham sensores luminosos, então a luz apagava e você se via no escuro. Fazia movimentos para ver se algo se acendia, mas o máximo que consegui foi tomar um susto com o disparar da torneira automática na pia, que ficava encostada ao vaso.
Ah, a tecnologia...

No dia seguinte tomo o ferry para visitar a Fortaleza de Suomenlinna, um complexo de defesa distribuído por quatro ilhas interligadas por pontes, construído pelos suecos para defender a cidade no século XVIII. A travessia é rápida, menos de 15 minutos, com barcos fazendo o trajeto de 20 em 20 minutos - mas o mundo é outro além da baía.
Gansos selvagens e seus filhotes em Suomenlinna
Junho é a temporada de reprodução dos gansos selvagens na Finlândia e eles estão por todas as quatro ilhas. São tantos que nem dão muita bola para os humanos, os casais cambaleando no passo de ganso atrás dos filhotes, tão pequenos que nem penas eles ainda têm, só uma penugem que parece mais uma cobertura de pelos. Só se você chega muito perto é que vai encontrar a ameaça de um bico aberto ou uma grasnada mais agressiva dos pais (mais abaixo há o link para um vídeo dos pequenos).
Em Suomenlinna há uma série de museus, uma das três únicas igrejas no mundo com um farol marítimo acoplado na torre, sem falar no que sobrou das trincheiras e canhões montados para proteger Helsinki dos russos, nos anos 30. A Finlândia também estava incluída na “zona de influência” soviética negociada com os alemães no Tratado Ribbentrop-Molotov, em 1939 (veja os posts anteriores “O horror, o horror” e “De sapatos de dança em neves siberianas”).
O mesmo ultimato apresentado aos três países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia) foi dado aos finlandeses, para que permitissem bases soviéticas no próprio território para “cooperação militar”. A diferença é que a Finlândia, ao contrário dos vizinhos do sul, não aceitou a ameaça e foi invadida pelos russos em novembro.
O Exército Vermelho a essa altura não contava com a preparação necessária para lutar na neve e tinha perdido seus melhores oficiais nos expurgos stalinistas dos anos 30. Em março, depois de duros combates, os finlandeses conseguiram assinar um tratado de paz com Moscou em que perderam algum território, mas mantiveram-se independentes, escapando de se tornar mais uma “república” da União Soviética. Cerca de 25 mil finlandeses perderam a vida na guerra – além de 100 mil russos.
Ford M40 adaptada pelos finlandeses para a guerra
Em Suomenlinna há um pequeno museu contando a história militar finlandesa. Entre os equipamentos em exposição há um Ford M40, aquela caminhonete clássica dos filmes rockabilly norte-americanos. A Finlândia comprou nada menos que 2.000 delas, depois pintadas improvisadamente de branco, onde foram instalados canhões. Esses veículos foram essenciais na guerra com os russos, fazendo um papel duplo, no transporte de tropas e como peças de artilharia leve.

Helsinki manteve preservado praticamente como era o Estádio Olímpico, construído para os jogos que a cidade sediou, em 1952. É até hoje o principal estádio do país, com capacidade para 40 mil pessoas. A seleção nacional joga lá e é o grande palco de shows na capital. A maior parte da arquibancada segue descoberta e ninguém fala em construir uma cobertura. Os bancos ainda são de madeira, como na inauguração. A pista de atletismo também continua por lá – não se discute a retirada para melhorar a visão do gramado, até porque ela é utilizada em nível profissional e amador.
Quando chego ao estádio, onde Ademar Ferreira da Silva ganhou a primeira de suas duas medalhas de ouro olímpicas no salto triplo, me deparo com uma bandeira do Brasil logo no salão de entrada, para marcar o fato. Dentro, no campo, meninas de sete e oito anos participam de um treino de futebol. Quando subo à torre, que oferece uma visão panorâmica de Helsinki, vejo que há uma outra partida prestes a começar no estádio em frente, bem menor – e de futebol feminino.
Parece que só as meninas vão a campo por lá... Quando desço da torre, atravesso a rua e me dirijo à entrada – havia uma bilheteria e a senhora na guarita me informa que são 8 euros para entrar. Em volta do gramado (perfeito), um generoso barranco oferece uma visão ideal da partida. É de lá que assisto à peleja.
Estádio Olímpico, descoberto, com bancos de madeira e pista de atletismo
Não foi um mal jogo. Disputado, alguns bons lances individuais, trocas de passes... No intervalo retorno à bilheteria, para conversar um pouco mais com a simpática senhora, que falava um inglês razoável. Ela era fã do time da casa, o HJK – que, me conta, estava “na sua pior temporada de todos os tempos”. A equipe era a vice-lanterna, com uma vitória, um empate e seis derrotas em oito partidas disputadas. O último colocado era justamente o time enfrentado no dia, o ONS, do interior do país, que tinha os mesmos quatro pontos, mas um saldo de gols menor.
Ela me explica que aquela era a elite do futebol feminino finlandês, embora as jogadoras fossem semiprofissionais - todas trabalham, estudam e treinam no tempo livre. Eram jovens, entre 17 e 21 anos, a maioria. A senhora me oferece para entrar de graça no estádio, mas agradeço e retorno ao barranco, onde batia um agradável solzinho.
No final acho que dei sorte, vejo o HJK bater o ONS por 3 a 0 e deixar a zona de rebaixamento.

No meu último dia em Helsinki resolvo experimentar uma tradição finlandesa e visitar uma das últimas saunas à lenha que ainda restam na capital. Entro na Kotiharjun Sauna no meio da tarde de uma terça-feira e ela está quase vazia. Você paga 15 euros, recebe uma toalha e pode ficar o tempo que quiser, até o fim do expediente, às 19h.
HJK x ONS, futebol feminino finlandês visto do barranco
Na Finlândia se toma sauna nu, então há duas salas separadas: homens no andar térreo e mulheres no segundo piso. O calor para a sala do suadouro é gerado por uma estufa alimentada por toras de madeira. Uma manivela permite que os usuários liberem mais vapor, aumentando a temperatura do recinto, se desejarem.
Não sou um frequentador de saunas, embora goste de suar nelas, mas o calor lá dentro não me pareceu para principiantes. Aguento uns dez minutos e saio para tomar uma ducha. Encarei três sessões intermediadas pelos banhos gelados e a experiência não foi ruim - embora a visão de rotundos senhores como vieram ao mundo esteja longe de ser meu cenário ideal para relaxar.
Depois do banho, quando já estou terminando de me vestir para ir embora, entra no vestiário um senhor bem magro, aparentando uns 70 e poucos anos, com uma comprida barba a la Papai Noel. Ele fala alguma coisa em finlandês para mim e me desculpo, em inglês, dizendo que não entendo a língua.
Ele me observa, curioso, e pergunta em um inglês arrastado de onde sou. Ao ouvir Brasil, ele solta uma gargalhada digna do bom velhinho, com as mãos na barriga e tudo. Em seguida tira do bolso uma garrafa de plástico transparente, daquelas de um terço de litro, já quase vazia. Desrrosqueia a tampa e a estende para mim.
Faço sinal de agradecimento, mas ele insiste: “English water, English water!”
Pego a garrafa e vejo no rótulo que a água inglesa era na verdade gin. Ele solta outra gargalhada daquelas e me abraça, repetindo: “English water, English water!”, uma piada que deve ter aprendido com algum marinheiro escocês.
Vestiário e tabuleiro de xadrez na Kotiharjun Sauna
Ouvindo a confusão, a senhora da recepção entra no vestiário e começa a dar uma bronca histórica no pobre Noel. Ele faz menção de beber a água inglesa da garrafa, mas ela impede. Ele tenta de novo, ela ergue o dedo, em ameaça. Na terceira tentativa, a senhora decide por ele para fora.
Antes de ir embora, o velhinho ainda pede desculpas para mim: “I’m sorry, this is not right” (Me desculpe, isso não é certo). Digo a ele e à senhora que está tudo bem e dou um amistoso tapa nas costas do Noel, tentando salvar a sauna vespertina do barba - sem sucesso, o cartão vermelho já tinha sido apresentado.
Ele deixa o vestiário e termino de amarrar meus sapatos. Na saída, em um inglês fluente, a senhora me pede desculpas pelo acontecido. Repito que está tudo bem, sem problemas - e começamos a conversar.
Ela me diz que o velhinho “é um bom homem, ele mora no prédio aqui da frente, mas hoje ele bebeu demais”. A explicação é sociológica: segundo a senhora, os finlandeses em geral são muito tímidos e têm uma grande dificuldade de entabular relações, por isso bebem tanto. O álcool funciona como uma espécie de lubrificante, facilitando o contato social.
Digo que o que mais me impressionou foi a atitude do velhinho em aceitar a bronca e a expulsão da sauna sem maiores discussões, estando um tanto embriagado e ainda ouvindo tudo aquilo de uma mulher. Explico que, no Brasil, dificilmente um lugar como aquele conseguiria funcionar sem ter um leão de chácara na porta para manter a ordem.
Ela me diz que, apesar de tudo, os finlandeses são muito bem educados. “Eu avisei a ele que já tinha bebido o suficiente por hoje”, conta. “Quando ele ameaçou tomar mais um gole, falei que se tentasse de novo, ia para fora. É como se ele ouvisse a voz da mãe dentro da cabeça dele”.
Benditas mães finlandesas...

Pôr do sol em Helsinki, hora de ir para casa
Saindo da sauna, enfrento mais uma vez um problema recorrente para mim em Helsinki: as portas finlandesas. Chego ao McDonald’s em frente à estação central de trem e me deparo com três entradas separadas, nenhuma delas sinalizada com algo do tipo “Entrance” (Entrada).
Dirijo-me à primeira, empurro e puxo a porta, fechada. Encaminho-me para a do meio, fechada também. A terceira e última, claro, estava aberta e consigo enfim entrar.
Não foi a primeira e nem seria a última vez, os finlandeses têm uma lógica com as portas que só eles entendem. Para que ter três entradas em um edifício se só uma fica aberta – e sem sinalização? Além disso, nunca se sabe se elas abrem para fora ou para dentro, isso varia.
É, acho que é hora de ir pra casa...

Carreguei um breve vídeo no YouTube dos gansos e seus filhotes em Suomenlinna:
http://youtu.be/OUEsM3QGb4A

terça-feira, 10 de junho de 2014

De sapatos de dança em neves siberianas

Art Nouveau em Riga, capital da Letônia
"I will stay in my place, you stay in yours”*
Karlis Ulmanis, presidente da Letônia, em discurso pelo rádio em 17 de junho de 1940, tentando acalmar a população após a chegada dos tanques soviéticos. Quatro dias depois ele seria exonerado pelos russos e enviado a Stavropol, no Cáucaso, e morreria em uma prisão no Turcomenistão dois anos depois.

No dia 12 de junho de 1941, Janis Dreifelds recebeu um aviso do seu inquilino, um homem que trabalhava na estação de trem de Jurmala, uma cidade cerca de 20 quilômetros a oeste da capital da Letônia, Riga, onde a família Dreifelds vivia em uma pequena fazenda. O ferroviário tinha visto dezenas de vagões de transporte de gado sendo reformados para transportar pessoas, com camas de madeira adaptadas às paredes.
Janis não prestou atenção aos avisos, apenas para ser acordado no meio da madrugada com batidas na porta, dois dias depois, por cinco membros da Cheka, a polícia secreta soviética na Letônia. Depois de revistar a casa os chekistas ordenaram que ele, a mulher Emilija e a filha Ligita, de 14 anos, arrumassem rapidamente suas coisas para seguir com eles. Sem saber o que levar ou para onde iam, mal se prepararam. Ligita embarcou para a Sibéria em seus sapatos de dança, com os quais passaria o primeiro inverno siberiano.
Bálticos, entre Hitler e Stalin, no Museu da Ocupação da Letônia
A cena é descrita com perfeição por Sandra Kalnietes, filha de Ligita, no livro With Dance Shoes in Siberian Snoes (Com Sapatos de Dança em Neves Siberianas), que nasceria onze anos depois, em uma vila da Sibéria, em um dos muitos campos de colonização forçada do chamado “Arquipélago Gulag”, a teia de trabalhos forçados soviética. Sandra conseguiria retornar à Letônia em 1957, com a mãe e o pai, Aivars, e se tornaria uma das ativistas na independência do país, chegando depois ao posto de ministra das Relações Exteriores, comandando a negociação da entrada do pequeno país báltico na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar do Ocidente.
A deportação da famíia Dreifelds, em 1941, fez parte da primeira leva de expurgos realizados pelos soviéticos nos três países bálticos, Lituânia, Letônia e Estônia, quando, entre 14 e 17 de junho de 1941, 60 mil pessoas, incluindo mulheres, idosos e crianças, foram enviados à força para o exílio siberiano, sem maiores explicações. Emilja e Ligita, por exemplo, enfrentaram uma viagem que levou 27 dias, primeiro de trem, depois de barco pelo rio Ob, até chegar ao kolkhoz (fazenda coletiva) Bolshoy Chigas, a 6.000 quilômetros da Letônia. Ali elas teriam que viver, ou melhor, sobreviver...
Parasha, na réplica da cabana do Gulag siberiano
Ao chegar a Riga, nota-se claramente a diferença em relação à Lituânia. Enquanto no vizinho do sul a população é homogênea, na Letônia há uma razoável proporção de russos, trazidos para o país durante a dominação soviética - os números de 2009 davam conta de que quase 30% dos habitantes são de origem russa. Ouve-se russo sendo falado o tempo todo e a capital tem outra identidade em relação a Vilnius, seu par na Lituânia, com quarteirões inteiros de prédios ao estilo Art Noveau. Riga também é maior, são 700 mil habitantes, e encontrei um povo mais aberto do que os lituanos.
Visito o Museu da Ocupação da Letônia e lá encontro a estória das ocupações contada em detalhes. Depois do Tratado Ribbentrop-Molotov de 1939, que dividiu a Europa Oriental em áreas de influência nazista e soviética (veja o post "O horror, o horror..."), os três países bálticos foram anexados à União Soviética como repúblicas em 1940, em seguida ocorreram as primeiras deportações, na tentativa de “sovietizar” a região. Os alemães atacam em 1941 e tomam os três bálticos para si – depois do “Ano do Terror” soviético, as tropas nazistas foram recebidas como libertadores no Báltico. Milhares de lituanos, letões e estonianos chegaram a lutar ao lado dos alemães.
O museu tem uma réplica de como eram as cabanas de madeira onde tinham que viver os deportados para a Sibéria. A estrutura conta com uma série de beliches de madeira, cobertos de palha, onde se espremiam as pessoas, tão apertadas que para se virar era preciso organizar o movimento em conjunto. Quem levantava para ir ao banheiro – que na verdade era a um barril de petróleo cortado ao meio chamado de parasha, no canto da cabana – perdia o lugar e era obrigado a dormir o resto da noite no chão. Assim, a maioria se aliviava ali mesmo, nas calças.
Antiga prisão da KGB, em Vilnius
A parasha é um capítulo à parte da vida no Gulag, presente nos campos de trabalhos forçados, prisões e vagões de transporte de prisioneiros. Com ironia, também era chamada de Red Moscow, nome de um perfume produzido na Rússia. A parasha aparece nas memórias de muitos prisioneiros que sobreviveram ao período stalinista, que citam o terrível cheiro que vinha do barril descoberto como uma marca inesquecível, presente em todos os lugares, nas celas, cabanas, nas roupas e até na comida...
Nem todos os que escaparam às deportações de 1941 e permaneceram nos três países bálticos tiveram muito melhor sorte. Em Vilnius, na Lituânia, a antiga sede da KGB ou Cheka, foi preservada e transformada no Museu do Genocídio. Ali, no imponente edifício do século XIX que hoje fica em frente a um belo parque onde famílias aproveitam a primavera europeia, ficava a mais temida prisão do país.
No porão do prédio, no início de 1947, dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e início da segunda ocupação soviética na Lituânia, havia 57 celas e duas solitárias, para onde eram destinados os “inimigos da classe operária”. Ao chegar, o preso era colocado em uma cela de 1,5 metro quadrado, onde permanecia de pé durante horas, até que seus documentos fossem checados. Dali era encaminhado a uma segunda cela, onde era despido – gravatas, cintos, sapatos e até botões de roupas eram retirados, para evitar marcas nas paredes ou tentativas de comunicação sonora, via código Morse.
Porão das celas na prisão da KGB, em Vilnius
Em seguida o detido era levado à sala de identificação, onde suas fotos e digitais eram colhidas. Ao lado dessa havia outra, a sala da guarda, em que se vê uma balança, usada para pesar as entregas de comidas de familiares aos presos – não se podia exceder o limite permitido. A questão era que, se dependessem apenas da ração distribuída na prisão, dificilmente os detidos conseguiriam sobreviver por muito tempo.
Eram três refeições ao dia. O café da manhã proporcionava 300 gramas de pão duro e um copo de água quente, chamado de chá. O almoço variava entre uma sopa aguada com cabeças de peixe, folhas de repolho e de outros vegetais ou um mingau de aveia. O jantar oferecia peixe salgado, mais um copo de água quente (o chá) e um pedaço de pão.
Os presos eram mantidos em 15 na mesma cela, sem camas ou armários – dormiam no chão, de concreto. Durante o dia eram proibidos de dormir ou encostar-se às paredes (deviam respeitar uma distância de 15 centímetros delas) e a luz permanecia acesa dia e noite. A umidade era tanta no porão da KGB que as paredes estavam sempre cobertas de gotas de condensação, as roupas viviam úmidas, os sapatos mofavam.
As solitárias eram destinadas aos presos que infringissem alguma regra da prisão, como tentar se comunicar com um companheiro de outra cela, batucando mensagens em código Morse nas paredes, por exemplo. Os infratores eram jogados apenas de cuecas na pequena cela sem aquecimento, onde recebiam uma ração diária de 300 gramas de pão e meio litro de água.
Sala de identificação, fotos e digitais
Uma das celas mais sinistras da prisão era a usada para fazer os presos “confessar”. À prova de som e com as paredes cobertas por tecido acolchoado, tinha cordas para atar os que não conseguiam mais ficar em pé depois das torturas aplicadas pelos agentes. As sessões começavam no meio da noite, para pegar o prisioneiro desprevenido. Ele era acordado e levado para a cela do terror, em sessões que alternavam dias e se estendiam por semanas - às vezes meses.
Mas havia outras formas de tortura. Em 1996, já no período pós-ocupação soviética, quando foi realizada uma reforma no sistema de aquecimento do edifício, os operários encontraram duas piscinas de concreto encobertas pelo piso. Eram duas celas paralelas, construídas em 1945, para onde também se levava os presos que deviam “confessar”. Só de cuecas, eles eram colocados sobre um estreito pedestal redondo de metal instalado no meio de cada piscina, cheia de água gelada, onde deveriam permanecer até segunda ordem. Se o detido dormisse ou desfalecesse, caía na água gelada – e, agora tremendo de frio, seguiria lutando para se manter consciente e equilibrado no poleiro. O tempo médio de permanência na “cela da piscina” era de cinco dias e cinco noites.
O lavatório da prisão era uma sala com quatro ou cinco chuveiros alinhados, para onde os presos de uma mesma cela eram trazidos, juntos, uma ou duas vezes por mês. Os guardas controlavam o fluxo do banho e se divertiam liberando alternadamente água gelada ou fervente, observando a reação dos detentos.
Na parte externa da prisão havia um pátio, cercado por muros de três metros de altura e arame farpado no topo, para onde os presos eram levados para o exercício, de dez a quinze minutos diários. Eles deviam permanecer com os braços atrás das costas, caminhando em um círculo, em silêncio absoluto, vigiados de perto pelos guardas. Mais tarde, em 1969, foram construídas cinco celas desenhadas para a “caminhada” dos detentos. Essas se assemelham a uma gaiola, com um banquinho no centro e um gradil no teto. Em volta dele todos deviam andar, em silêncio, observados pelos vigias que observavam de cima.
"Cela da piscina", com o poleiro onde o preso devia se equilibrar 
Em outra parte do porão, chega-se talvez à mais obscura de todas a salas, a cela das execuções. Não se sabe quantas pessoas foram mortas ali, mas os historiadores lituanos estimam em 20 mil pessoas as vítimas entre 1944 e 1953, o período mais intenso da resistência contra a dominação soviética. Um vídeo (veja o link abaixo) ilustra o procedimento padrão usado na sala, desde a chegada do prisioneiro, uma breve leitura do seu “caso” pelo oficial de plantão e seu encaminhamento ao cômodo contíguo, onde ele era rapidamente baleado na nuca e o corpo despachado para a área externa da prisão, por uma canaleta especialmente desenvolvida para o fim. E em seguida vinha outro, e outro...
Para a população báltica que escapou da deportação e conseguiu evitar a prisão chekista, a vida também não foi fácil durante a dominação soviética. Transformadas em repúblicas da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Lituânia, Letônia e Estônia foram adaptadas à economia socialista. Industrialização forçada e coletivização da agricultura foram só dois elementos da nova vida socialista, seguidos dos cartões de racionamento de comida e limitação de movimento – não só para o exterior, mas dentro dos próprios países (só podia viver nas cidades quem possuía documentos atestando tal direito).
Realismo socialista, em tela de Valdemar Vali, KUMU
A vida sob o “Grande Camarada Stalin” é retratada como brilhante na arte oficial (e única) do período, seja em pinturas, seja nos cartazes de propaganda. É o chamado Realismo Socialista Stalinista, em que operários e camponeses aparecem sempre em posição altaneira, sorridentes e satisfeitos. O estilo pode ser visto largamente no KUMU, o Museu de Arte da Estônia, em Tallinn. Nos jornais, as metas dos planos quinquenais eram cumpridas com louvor, mas na realidade faltava comida e bens de consumo simples, como sabão e sapatos.
A capital estoniana é a menor dos três bálticos (430 mil habitantes) e a que tem o centro medieval mais preservado. País mais ao norte da região, a Estônia é uma mistura de Europa Oriental e Escandinávia, nas comidas e até na língua, que tem alguma proximidade com o finlandês – que por si só não tem afinidade com nenhuma outra língua europeia.
Os bálticos ainda enfrentariam uma segunda grande leva de deportações para a Sibéria. Entre 25 e 29 de março de 1949, em uma operação que os soviéticos batizaram de Coastal Surf (algo como Onda na Costa), 95 mil lituanos, letões e estonianos foram deslocados para o Gulag siberiano. Nessa onda, a mãe de Sandra Kalniete (autora do livro que citei no início do post), Ligita, foi novamente carregada à força para os confins da Rússia. Ela tinha sido autorizada a retornar à Letônia no ano anterior, mas teria de enfrentar o terror da deportação pela segunda vez, apenas para chegar a Kolpachevo, seu destino final, e receber a notícia de que sua mãe, Emilija, tinha morrido no mês anterior...
Centro medieval de Tallinn, capital da Estônia
A independência dos países bálticos viria só nos anos 90, depois da liberalização do regime soviético implantada por Mikhail Gorbachev, a partir de 1985. Em 1987, um grupo de dissidentes da Letônia batizado de Helsinki-86 organizou o primeiro ato pacífico pela autonomia, depositando flores na base do Freedom Monument, em Riga, que marca a primeira independência do país, em 1918.
Também a partir de 1987 começa a chamada Singing Revolution (Revolução Cantante), quando um ciclo de manifestações espontâneas chegou a reunir cerca de 300 mil pessoas em Tallinn, com bandeiras da Estônia, para cantar hinos e canções nacionalistas proibidas sob o regime soviético (há também um link para um vídeo da cantoria abaixo, do Museu das Ocupações da Estônia). O fenômeno se espalha também para os dois países vizinhos.
Em 1989, no aniversário de 50 anos do Tratado Ribbentrop-Molotov, que resultou na anexação de Lituânia, Letônia e Estônia pela URSS, uma corrente humana se estendeu por 600 quilômetros, ligando as três capitais, Vilnius, Riga e Tallinn. A independência só se concretizaria depois de 1991, após a tentativa de golpe militar contra Gorbachev em agosto, que resultou na desintegração da União Soviética.
Depois de se verem livres dos russos, as três repúblicas rapidamente voltaram-se para o Ocidente, abraçando a economia de mercado e passando a integrar tanto a União Europeia quando a Otan a partir de 2004. Estonia e Letônia já aderiram ao euro, enquanto a Lithuania mantém sua própria moeda, a lita.
Que o futuro seja mais leve que o passado para os bálticos...

Freedom Monument, em Riga, onde começou a independência da Letônia
*“Eu permanecerei no meu lugar, vocês permaneçam no de vocês.”

Os links para os dois vídeos citados no post seguem abaixo:

Prisão da KGB
http://youtu.be/ArKe3BXyr7M

Singing Revolution
http://youtu.be/tsO6tMLGeaM

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O horror, o horror...

Vilnius, a capital da Lituânia, vista da Gediminas Hill
“Eles mataram as mulheres com quem minha mãe costumava ir comprar farinha e sal; eles mataram os meninos com quem eu trocava figurinhas e pombos; eles mataram os velhos homens de barba para quem meu pai dizia que ia nos entregar se a gente se comportasse mal.”
Vyautas P. Bloze, Nenoriu!


Chego em Vilnius no começo de uma manhã amena e ensolarada, depois de uma longa viagem de ônibus vindo de Varsóvia (Polônia), um trajeto de meros 390 km que levou inacreditáveis nove horas para ser cumprido, durante a noite. Capital da Lituânia, o mais austral dos três países bálticos, a cidade tem pouco mais de 500 mil habitantes e é famosa pelo centro barroco, em boa parte reconstruído depois da destruição da Segunda Guerra Mundial.
Vilnius é a minha porta de entrada para o Báltico - de lá eu pretendia seguir para os outros dois vizinhos, pela ordem Letônia e Estônia, todos atualmente membros da União Europeia. Eu imaginava encontrar culturas semelhantes em países tão próximos, pouco extensos e fronteiriços, mas não foi nada disso. Três línguas totalmente distintas, comidas, hábitos e atitudes idem. O que realmente os três têm em comum é um passado histórico recente cruel, em que se viram indefesos e entregues à própria sorte no jogo de interesses das grandes potências do século XX, resultando em uma dupla ocupação que se estendeu por mais de 60 anos.
A divisão do leste entre nazistas e soviéticos
O destino dos países bálticos começou a ser definido em uma canetada, em Moscou, na madrugada de 24 de agosto de 1939. Nessa noite os ministros do Exterior alemão e russo assinaram o acordo concebido por Hitler e Stalin, o Tratado Ribbentrop-Molotov, que oficialmente foi apresentado como um acordo de não-agressão entre os dois gigantes, mas em suas cláusulas secretas e não divulgadas dividia a Europa em duas áreas de influência, nazista e soviética. Pelo pacto, a Polônia deixaria de existir, o oeste ficaria para o Reich e o leste para os russos. A Finlândia, a Besssarábia (hoje um pedaço da Romênia) e as três nações do Báltico também cairiam sob a “influência” soviética.
Em setembro e outubro, a União Soviética exigiu de Lituânia, Letônia e Estônia que assinassem um “Pacto de Assistência Mútua”, que permitia aos soviéticos instalar bases militares nos três países, o primeiro prelúdio para a anexação. O segundo sinal visível foi a repatriação da população de origem germânica, também prevista no tratado nazi-soviético, que ocorreu em outubro. A invasão russa para controlar os bálticos veio mesmo em junho de 1940, rápida e completa. Em um ano começariam as deportações para a Sibéria dos chamados “inimigos da classe operária”, assunto que merece e terá um post só para si...
As coisas ficariam mais complexas em 1941, quando Hitler decide romper o pacto com Stalin e invadir o território soviético, na Operação Barbarosa, que começa no dia 22 de junho. A Blitzkrieg (guerra-relâmpago) pega o Exército Vermelho totalmente despreparado e em poucos dias as tropas nazistas ocupam os três bálticos, anexados ao Reich. Quando chegaram a Vilnius, no dia 24 de junho, eles encontraram uma base militar soviética em construção, 10 quilômetros a sudoeste da região central, em Paneriai. A instalação estava sendo preparada para ser um depósito de combustível para tanques e havia sete grandes fossos já escavados em meio à floresta, três com 34 metros de diâmetro e 9 metros de profundidade, outros quatro com 12 metros de diâmetro e três metros de fundura. A base também era servida por uma linha ferroviária. Para os alemães, aquilo tudo pareceu ter vindo a calhar.
Judeus mudando-se para gueto de Vilnius, foto do Museu do Holocausto
No começo da década de 1940, Vilnius era um dos principais centros da comunidade de origem judia na Europa Oriental, chamada de “Jerusalém da Lituânia”. A população judaica do país era de 220 mil pessoas, quase 10% do total. Os alemães viram ali a oportunidade de testar a chamada “Solução Final”.
Entro no Museu do Holocausto de Vilnius e sou recebido por uma gentil senhora, que falando um inglês carregado do sotaque lituano me entrega um audio guide e explica a exposição. Logo na entrada, me deparo com o relatório escrito por Karl Jäger, SS-Standartenfuhër e chefe do Einsatzkommando 3, responsável por “lidar” com os judeus lituanos.
O relatório é datado de 1 de janeiro de 1941 e assinado por Jäger, ou seja, pouco mais de seis meses depois da chegada dos alemães à capital lituana. Ele escreveu aos seus superiores em Berlim: “Hoje eu confirmo que nosso objetivo de resolver o Problema Judeu para a Lituânia foi atingido pelo EK3. Na Lituânia não há mais judeus, à parte dos trabalhadores e suas famílias. Desse total: Em Schaulen (4.500); em Kauen (15.000); em Vilnius (15.000). Eu também pretendia matar esses trabalhadores judeus e suas famílias, mas encontrei forte resistência por parte da administração civil (Reichkomissar) e a Wermacht (Exército Alemão) e instruções foram dadas para que esses judeus e suas famílias não fossem executados”.
A “solução do Problema Judeu” em Vilnius começou para valer em setembro de 1941, quando os alemães decidiram concentrar toda a população judaica da cidade (cerca de 40 mil pessoas) em dois guetos, um maior e um menor. No mês seguinte começaria a evacuação, primeiro as crianças e velhos, que não tinham capacidade de trabalhar.
Letreiro na entrada de Panierai, onde era a entrada do campo
É uma sensação estranha caminhar pelas ruas em que ficavam os dois guetos judeus de Vilnius - na verdade foram em grande parte destruídas pelos bombardeios russos e depois reconstruídas, no mesmo padrão barroco anterior. Hoje o que se vê são cafés, restaurantes, lojas de grife, lanchonetes de fast food, no centro da parte turística da capital. Mas a verdadeira sensação estranhar viria no dia seguinte, quando resolvi visitar Paneriai...
O acesso é extremamente simples, toma-se um trem na estação central de Vilnius, cuja passagem custou o equivalente a 1 euro, e em dez minutos chega-se a um sobrado de um amarelo esmaecido em frente a um depósito de vagões de carga, que faz o papel de estação ferroviária na vila. Não há placas ou indicações, você segue por uma rua espremida entre os trilhos e a floresta, com algumas casas de madeira no meio, uma caminhada de uns dez minutos.
Não há portão ou cobrança de ingresso, mas um grande letreiro marca o local em que tudo o que havia a fazer era esperar pela morte, em lituano: Paneriu Memorialas. Peguei o trem das 9h10 e quando chego lá não há uma alma (pelo menos visível) por perto. Uma trilha bem aberta leva aos diversos sítios do memorial – eu tinha um mapa explicativo que a senhora do Museu do Holocausto me dera.
As primeiras execuções em Paneriai ocorreram em 11 de julho de 1941, quando 348 judeus e prisioneiros de guerra soviéticos foram trazidos da prisão de Lukiskes, em Vilnius. O campo era considerado perfeito para a tarefa pelos alemães: relativamente perto da capital, mas ao mesmo tempo suficientemente escondido no meio da floresta para não chamar muito a atenção - além do que as covas para enterrar as vítimas já tinham sido parcialmente escavadas pelos soviéticos. As mortes eram “supervisionadas” pelos SS, mas a “equipe de execução” era formada por lituanos, russos e poloneses.
Fosso com pedras em homenagem aos mortos, ao estilo judeu
Nesse período os alemães ainda não tinham chegado ao modelo final que ficaria notório nos campos de Auschwitz e Birkenau, com câmaras de gás disfarçadas de chuveiros coletivos e crematórios industriais. Em Paneriai os assassinatos eram executados a bala. Para economizar munição, por vezes as vítimas eram alinhadas, para que a mesma bala fosse suficiente para matar mais de uma pessoa. Outras vezes usava-se a coronha do fuzil.
É difícil descrever o que se sente ao caminhar pelo meio da floresta, sozinho, sabendo o que se passou por lá. Para deixar tudo pior, quando paro para tirar uma foto de um dos fossos (hoje transformado em memorial), em que os soldados tomados como prisioneiros do Exército Vermelho eram deixados para morrer de fome, uma estranha interferência arroxeada toma a tela do celular – como se fosse uma daquelas linhas de estática que aparecem quando um telefone móvel toca perto de um computador. E não foi a única vez. Em outro dos fossos, a interferência se repetiu.
Mas tinha mais... Pelo meio das trilhas que conectam os fossos, eu me deparei com mais de um deles. Pequenos caramujos esbranquiçados, que pareciam albinos, arrastavam-se penosamente pelo asfalto, deixando atrás de si uma trilha também branca, como se parte do próprio corpo deles fosse ficando pelo caminho para conseguir se locomover por aquela superfície áspera.
Para os que acreditam em karma, de acordo com as suttas indianas há duas formas de um ser humano renascer como um animal: desenvolver a forma de pensar de um deles ou acumular uma quantidade suficiente de karma ruim. A segunda opção me pareceu largamente preenchida pelos antigos comandantes de Panierai...
Um dos muitos caramujos em Paneriai, ou seriam...
Quando a maré da guerra se inverteu e os alemães se deram conta de que a derrota era uma questão de tempo, começaram a acelerar o extermínio em massa dos judeus e outras minorias que ainda restavam e ao mesmo tempo tentaram destruir as provas para encobrir o genocídio. Em 1943 o pequeno gueto de Vilnius, o último ainda em pé, foi liquidado em Panierai (estima-se em 7.000 pessoas). E em março de 1944, já com o Exército Vermelho próximo, os dois campos de trabalhos forçados com judeus ao redor da capital também foram eliminados (outras 3.000 pessoas).
Em abril de 1944, os nazistas aceleram as ações para eliminar provas e concentram uma equipe de 80 judeus em Panierai para isso – era a chamada “Brigada dos Queimadores”. As tarefas desses pobres eram divididas em grupos: uma parte cortava madeira, outra cavava as fossas e um terceiro grupo usava ganchos de ferro de um metro e meio para fisgar os corpos e retirá-los da terra. Um quarto grupo, dividido em duplas, carregava os corpos (ou partes deles) em macas a um outro fosso, onde uma rampa de madeira tinha sido especialmente montada para que eles subissem e jogassem os restos humanos em camadas sobre a fogueira, que queimava sem parar. Dois prisioneiros eram encarregados de alimentar o fogo ininterruptamente. Todos eram mantidos com as pernas presas por correntes, para evitar que fugissem.
Réplica da escada usada pela "Brigada dos Queimadores"
Em meio a esse terror, a “Brigada de Queimadores” conseguiu cavar um túnel de 32 metros, trabalhando à noite durante 76 dias, entre o bunker onde eram confinados e a floresta. Divididos em grupos de dez, 44 deles conseguiram escapar na noite de 15 de abril de 1944, ainda presos pelas correntes entre as pernas, antes que os alemães percebessem e soassem o alarme.
Konstantin Potanin, um dos prisioneiros envolvidos na fuga, conta que eles conseguiram ultrapassar duas cercas de arame farpado, na escuridão da floresta, escapando de Panierai. “Parecia que o pior tinha passado, deixado lá atrás do arame farpado. Mas um desafio a mais esperava a gente: minas começaram a explodir debaixo dos nossos pés – o campo da morte era minado por quase todos os lados. E agora as minas cortavam ao meio aqueles que tinham escapado do inferno. A sorte estava comigo e eu escapei das minas.”
Ao todo, 12 da “Brigada dos Queimadores” conseguiram escapar com vida de Panierai – outros 32 morreram na tentativa. No Panierai Memorial Museum a estória é contada em detalhes, inclusive com fotos de quatro dos sobreviventes, primeiro no local do campo, logo após o fim da guerra, e depois três deles reunidos e já velhinhos, em Israel.
Os historiadores assumem que cerca de 100 mil pessoas foram exterminadas no campo, sendo 70 mil delas judeus. Em toda a Lituânia, ao final da Segunda Guerra Mundial, apenas 20 mil dos 220 mil judeus que ali viviam sobreviveram – e só metade deles permaneceram no país depois de 1946. Se o pior tinha passado para os judeus com a derrota nazista, o período de ocupação soviética seguiu amargo.
Escadaria de Taurakalnis, construída originalmente com túmulos judeus
Na tentativa de “sovietização” dos países bálticos, os judeus sobreviventes eram vistos pelo poder como um entrave, uma população com hábitos “não-socialistas” que precisava ser assimilada. Havia mais de 100 sinagogas só em Vilnius antes da guerra, mas hoje só restou uma, a Choral Sinagogue – foi usada pelos alemães como um depósito de medicamentos durante a guerra. Com a chegada dos russos, a memória do Holocausto judaico foi reprimida e até os antigos cemitérios judeus que existiam ao redor da capital foram desmontados, as lápides dos túmulos usadas como material de construção para erguer novos edifícios no estilo soviético.
No centro de Vilnius, as escadarias de pedra que cercam o parque em Taurakalnis (algo como Monte Tauras, em lituano), foram construídas com essas lápides. É duro imaginar a tristeza dos sobreviventes ao pisar sobre os degraus onde os nomes em hebraico dos antepassados ainda eram visíveis, em relevo. Atualmente, depois do fim da dominação soviética, as pedras foram substituídas.
Poderia se imaginar que as coisas iam melhorar para a população báltica com o fim da guerra, mas o problema era que os russos estavam chegando... Aliás, chegando não, retornando, depois do curto período de dominação entre 1939 e 1941. A nova ocupação seria bem mais longa. Isso eu veria não só em Vilnius, mas também em Riga, na Letônia, e em Tallinn (Estônia), meus próximos destinos.

Choral Sinagogue, a única que restou das 100 que havia em Vilnius
Logo na entrada do Museu do Holocausto, em Vilnius, um poema me recebeu, e reproduzo aqui, em tradução livre:

"Lembre-se da Catástrofe do povo de Israel, sim, lembre-se da sua luta e sua morte, vá e pesquise...
E faça isso em nome dos que morreram. E deixe a memória da Catástrofe ser o sal do seu sangue, uma parte indispensável da sua carne e de seus ossos.
Cerre os dentes e lembre-se! Lembre-se quando for comer! Lembre-se quando bebe! E quando você ouvir uma canção - lembre-se! E quando o sol brilhar - lembre-se! E quando a noite chegar - lembre-se!
E quando você construir uma casa, derrube uma parede e uma cidade em ruínas se mostrará no seu lugar.
E quando você arar um campo, erga uma pilha de pedras lá para honrar a memória de seus irmãos e irmãs que nunca chegarão à sua terra prometida.
Empreste um ouvido atento e ouça a narrativa da Catástrofe do povo judeu."
Mark Dvorzhetsky, Jerusalém of Lithuania, Strugle and Death.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Macedônia, à procura de uma identidade

Museu de Arqueologia, obra do "rebranding" de Skopje
"Can one move an empire as if it were a house?”*
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare


Depois do Kosovo, a passagem pela fronteira macedônia, também por terra, foi bem mais tranquila – eu já conhecia a mecânica do processo e esperei calmamente pelo meu passaporte ser devolvido, já dentro da van. A chegada a Skopje, a capital do país, com 500 mil habitantes, é que causaria surpresa. Encontrei um canteiro de obras, com palácios e pontes em construção, os guindastes gigantes pipocando na região central. É que a Macedônia vive um processo de “rebranding”, um neologismo até em inglês, que dá nome à tentativa de mudar a imagem existente de um país. Eu nunca podia esperar que a Macedônia estaria atravessando uma situação parecida com a do Brasil...
O governo macedônio batizou de “Skopje 2014” a iniciativa de revolucionar a capital visualmente, erguendo nada menos que 20 novos edifícios e 40 monumentos, de gigantescas estátuas de bronze a um portal de mármore ao estilo do Arco do Triunfo parisiense. A ideia é criar uma imagem mais “clássica” da cidade, com o objetivo de atrair a indústria do turismo mundial e o capital financeiro sem fronteiras - aproveitando para reafirmar a própria visão da história em meio ao processo.
Os críticos da reforma urbana de Skopje fazem as mesmas observações ouvidas no Brasil, de que um país não se faz de monumentos, mas de investimento em saúde, educação, moradia etc. O custo das obras não é divulgado, mas estimativas avaliam em até 500 milhões de euros (R$ 1,5 bilhão) o valor total. É triste ver como até nisso nossos escândalos são maiores do que os dos outros... Com esse dinheiro eles vão construir 20 edifícios e 40 monumentos, enquanto só o Estádio Mané Garrincha, em Brasília, custou 384 milhões de euros (R$ 1,15 bilhão). Mas o assunto aqui é a Macedônia.
"Guerreiro a cavalo" e a bandeira macedônia, no centro da capital
Apesar de ser um país pequeno, com apenas 2 milhões de habitantes, a história macedônia é rica – e confusa, como quase tudo nos Balcãs. Quem colocou o nome da região no mapa foi Felipe II, um rei que submeteu os gregos entre 359 e 336 Antes de Cristo, dando início ao império que seu filho, Alexandre, o Grande, expandiria até a Índia nas décadas seguintes. Essa é a imagem que o governo nacional quer difundir, embora de maneira velada, para não aprofundar o conflito com os gregos...
No processo de “rebranding” de Skopje foi erguida uma enorme estátua de bronze de um homem barbado com o punho erguido, no lado norte do Rio Vardar, batizada apenas de “Guerreiro”. Bem na sua frente, do outro lado do rio, a uns 300 metros de distância, construíram outro monumento, um homem a cavalo, de espada em riste, como que respondendo à saudação do primeiro gigante – este nomeado simplesmente “Guerreiro a cavalo”. Não está escrito em lugar nenhum, mas todos na capital sabem que são respectivamente Felipe II e Alexandre, o Grande, montado no seu famoso cavalo Bucéfalo.
Roma submeteria os macedônios em 168 BC e a região, no meio de uma rota comercial importante entre Bizâncio e o Mar Adriático (a Via Ignatia) manteve suas cidades prósperas. Com a divisão do Império Romano em duas partes, a área ficou sob controle de Constantinopla e da Igreja Ortodoxa.
A Macedônia foi sérvia por quase 200 anos, até a Batalha do Kosovo (1389) decretar o domínio otomano nos Balcãs pelos próximos 500 anos. Cristãos se tornam cidadãos de segunda classe, embora os turcos permitissem aos macedônios que mantivessem sua cultura, com restrições a novas igrejas. São desse período as grandes construções turcas em Skopje, a Kamen Moste (Ponte de Pedra), os banhos turcos, uma série de mesquitas e a Carsija, o antigo bairro turco que fica ao norte do rio, uma parte da cidade que se mantém ao largo do “rebranding”.
Bit Pazar, na Carcija, traços vivos da herança turca
Em ruas estreitas e calçadas com pedras irregulares, casarões otomanos dividem espaço com pequenas lojas vendendo de tudo: jóias, tapetes, brinquedos antigos, ferros de passar a carvão, relógios de corrente e vestidos muçulmanos. No ar espalha-se o tentador cheiro dos kebapcis assando nas grelhas, pequenos bolinhos de carne do tamanho de um dedo cujo nome e a quantidade de unidades servidas por porção varia, dependendo do país balcânico. Em Skopje eles vêm em múltiplos de cinco, sete ou onze, acompanhados de pimentões verdes assados e pão.
No limite norte da Carcija ainda funciona o Bit Pazar, um mercadão ao estilo turco, praticamente uma feira coberta, com frutas, verduras, carne, queijos e afins anunciados como nos dias otomanos. No final do século XIX, com o declínio acentuado do Império Turco, surgem os movimentos de independência na Macedônia, com a consequente repressão, levando a uma série de massacres de camponeses no começo do século XX. Em 1912, Sérvia, Grécia, Bulgária e Montenegro declaram guerra à Turquia, no que se converte na Primeira Guerra Balcânica, lutada em sua maior parte em solo macedônio. Os turcos são expulsos, mas em seguida é a vez de a Bulgária entrar em combate contra seus antigos aliados – rapidamente derrotados, os búlgaros se associam a Alemanha e Áustria na Primeira Guerra Mundial e reocupam a Macedônia.
No final do conflito, o território macedônio é dividido entre a Grécia e o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (a chamada Iugoslávia Roialista). Durante a Segunda Guerra Mundial, os partisans de Tito lideram a resistência aos alemães e búlgaros, prometendo aos macedônios que o seguissem o status de república na futura Iugoslávia comunista, o que se confirma, a partir de 1946.
É das cinco décadas seguintes que datam os monstruosos blocos de apartamento ao estilo soviético ao redor do centro e na periferia de Skopje. A nacionalização da agricultura e indústria também não deixou saudade, mas sob o comando de Tito o país ganha sua primeira gramática oficial (em 1952) e a Igreja Ortodoxa Macedônia é criada (em 1967, no aniversário de 200 anos da abolição do Arcebispado de Ohrid pelos gregos, que continuam sem reconhecer a autoridade da versão macedônia do clero até hoje).
Madre Teresa e os trocadores de figurinha da Copa
Falando em religião, Skopje é a cidade natal de uma personagem emblemática para os católicos. Gonxha Agnes Bojaxhiu nasceu por lá, em 1910, em uma família de origem albanesa – esse era o nome da Madre Teresa de Calcutá antes de se tornar famosa pelo cuidado aos miseráveis da Índia. No centro da capital, no local em que ficava uma pequena igreja onde ela foi batizada, destruída pelo terremoto que arrasou a cidade em 1963, foi construído um memorial e pequeno museu em homenagem a ela. Quando cheguei por lá havia uma multidão em volta da estátua da Madre, que achei ser algum grande grupo de peregrinos – era na verdade um grupo de adolescentes trocando figurinhas da Copa do Mundo...
Depois de dois dias em Skopje, sigo rumo sul, em direção a Ohrid, uma cidade a 200 quilômetros de distância, à beira do lago de mesmo nome, na fronteira da Albânia, um dos mais profundos da Europa, com quase 300 metros em alguns pontos. O lago é habitado por uma espécie de truta ancestral, que nada por lá desde antes do último período glacial, 11 mil anos atrás – presente em quase todo menu de restaurante, na verdade a opção dever ser evitada, por estar em risco de extinção.
À beira do Lago, Ohrid concentra um pouco de tudo o que a Macedônia tem de melhor: montanhas nevadas, águas transparentes, casarões otomanos espalhados pelos morros, simpáticos e velhos carros do período comunista (os chamados yugos), além de uma coleção invejável de igrejas ortodoxas em cenários à altura.
A cidade já era um centro cultural e comercial no século IV Antes de Cristo, no meio da rota entre o Adriático e Bizâncio. Depois das invasões eslavas do século VI e VII da Era Cristã, torna-se também um núcleo religioso da Igreja Ortodoxa. Em 862 dois monges ortodoxos de origem grega (São Cyril e São Methodius) são mandados pelo imperador bizantino para difundir a fé e a escrita entre os eslavos recém-chegados à Morávia, atual República Checa. Um discípulo deles, São Kliment, cria e consolida o alfabeto cirílico, usado até hoje pelos países eslavos. Acompanhado de outro monge, São Naum, ele se fixa em Ohrid, para disseminar a capacidade de ler e escrever no sul da Macedônia, onde juntos criam a primeira universidade eslava, no final do século IX.
Igreja Sveti Jovan at Janeo, no Lago Ohrid
Na minha chegada ao hotel sou recebido por Damyan, um macedônio na casa dos 40 anos, que fala inglês fluentemente. Pensando que eu era inglês (provavelmente por causa da origem da minha reserva), ele imediatamente me convida para ver um jogo da Premier League que estava para começar – e fica ainda mais contente ao descobrir que eu era brasileiro. Ele me serve uma dose de rakia, o característico brandy produzido em casa mesmo, para encarar o inverno nos países dos Balcãs (pode ser destilado de uvas, peras ou ameixas, dependendo do que estiver à disposição).
Sentamos para conversar e um pouco depois aparece a mãe dele, Vera, uma senhora de setenta e poucos anos que não falava inglês – o que não a impediu de fazer todas as perguntas que quis para mim. Quantos anos eu tinha? Que língua se fala no Brasil? Era perto da Bolívia, não era? Eu era casado? Onde estava minha mulher? Tinha filhos? “Ah, que graça só uma cachorrinha...” Mas o que significa Baleia em português? E ela é muito gorda? Então você deu esse nome por causa de um livro e agora ela ficou gorda? “Perfeito...” O interesse de Vera pelo país do Altiplano explicava-se por uma antiga amiga boliviana da faculdade, em Belgrado.
Damyan não continha as risadas ao traduzir cada pergunta e resposta à mãe, servindo-se de um pouco mais de rakia da garrafa transparente e sem rótulo nos intervalos. Depois da terceira dose já tinha prometido me levar para conhecer o lado sul do lago, de carro, no dia seguinte. Ele me conta que Vera é uma enfermeira aposentada e que seu pai é um ex-oficial da exército iugoslavo, que para sorte dele “se aposentou antes da desgraça na Bósnia” – ele hoje vive em Belgrado.
Afrescos da Igreja Sveti Kliment i Pantelejmon
Agradeço pela rakia, me despeço de Vera e saio para dar uma volta pela cidade, ao entardecer. As vistas do alto da fortaleza de Cars Samoil (construída no século XI) e da igreja Sveti Jovan at Kaneo são de cair o queixo, assim como os afrescos dentro dos templos. Na igreja de Sveti Kliment i Pantelejmon, por exemplo, eles cobrem as paredes do chão ao teto – lá também estão enterradas “partes” de São Kliment, o inventor do alfabeto cirílico, me informa o funcionário de plantão.
No dia seguinte, descubro que a promessa de Damyan tinha sobrevivido aos efeitos da rakia e no começo da tarde caímos na estrada, a bordo de um Corsa dos anos 90. Aproveito a viagem para perguntar sobre os anos da Iugoslávia, e ele me diz que tem “boas e más lembranças”. “O lado bom, era que tínhamos o melhor passaporte entre os países do Leste, podíamos viajar para qualquer lugar”, conta, falando dos anos que passou na Inglaterra, quando ainda era estudante, e depois na África do Sul, trabalhando como crupiê em um cassino.
Depois de uns 20 minutos, chegamos ao Monastério de Sveti Naum, o outro monge fundador da primeira universidade eslava da história, que mantinha ali um centro de educação no século IX. A igreja que hoje ocupa o local, também coberta por incríveis afrescos, é “um pouco posterior”, Damyan me explica, do século XVI. Se não bastasse o cenário surreal do lago, um casal de pavões vive solto em volta do templo.
O governo macedônio promoveu um referendo para consultar a população sobre a saída ou não da federação iugoslava, em setembro de 1991, em que 74% votaram a favor.  A independência foi decretada em janeiro do ano seguinte, com o presidente Kiro Gligorov conseguindo uma proeza notável, ao negociar com Belgrado a retirada pacífica do exército iugoslavo – a Macedônia foi a única das seis repúblicas a deixar a Iugoslávia sem ter que lutar uma guerra.
Se com os sérvios ao norte não houve problemas, a independência aprofundou os conflitos na fronteira sul, com os gregos. Mais da metade do território historicamente ocupado pela Macedônia fica atualmente na Grécia e a primeira bandeira adotada pelos macedônios, com a Estrela Vergina no centro, um símbolo roialista, foi visto pelos gregos como precedente para reclamar terras sob seu controle no futuro.
Um dos pavões da igreja no antigo Monastério de Sveti Naum
Pressões dos gregos obrigaram a Macedônia a adotar um nome provisório logo após a independência, FYROM (que em inglês é a sigla para Antiga República Iugoslava da Macedônia), como alternativa para garantir sua admissão na ONU (Organização das Nações Unidas). Em 1994, quando os Estados Unidos reconheceram o novo país, a Grécia respondeu com um embargo econômico. No ano seguinte os macedônios mudam a bandeira para a versão atual, um círculo dourado cercado por raios vermelhos e amarelos – que não chega a ser exatamente um modelo de pacifismo, lembra bastante o símbolo imperialista do Japão na Segunda Guerra Mundial.
Em 2005 a Macedônia fez seu pedido formal de adesão à União Europeia, prontamente bloqueado pela Grécia, que mantém posição semelhante em relação à Turquia, em razão do conflito na Ilha de Chipre. Três anos depois, a situação se repetiria para os macedônios na sua tentativa de entrar para a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar do Ocidente, também objetada pelos gregos.
Internamente, porém, a maior questão na Macedônia é com a minoria albanesa – que representa cerca de 20% dos 2 milhões de habitantes do país. Durante a campanha sérvia para expulsar os albaneses do Kosovo e os bombardeios da Otan, em 1999, cerca de 400 mil refugiados foram abrigados do lado macedônio da fronteira.
Mesmo assim, o UÇK (Exército de Libertação Nacional, a versão macedônia do UÇK kosovar), promoveu ataques em 2001. O conflito durou seis meses, até a assinatura do Ohrid Framework Agreement, um acordo que garantia alguns direitos à minoria, como a possibilidade de oferecer educação na língua albanesa e o estabelecimento de cotas étnicas para contratações no setor público.
Estátua de guerreiro clássico e a ponte turca, o que é mais macedônio?
No dia seguinte, na minha volta para Skopje, volto pensando na tentativa de “rebranding” do país. Depois de visitar Ohrid, chego à conclusão de que há coisas que nem os políticos conseguem arruinar. Enquanto os kebapcis estiverem assando na Carcija, do outro lado do rio, e a rakia ainda estiver sendo generosamente servida aos visitantes nos casarões otomanos em volta do lago, não há quantidade de prédios em estilo clássico ou estátuas de bronze capazes de mudar a verdadeira imagem da Macedônia.

*“Pode alguém mover um império como se fosse uma casa?”
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare

Carreguei dois videos curtos no YouTube, um com a vista do Lago Ohrid do meu quarto na pousada de Damyan, e outro com os incríveis afrescos ortodoxos da igreja Sveti Naum.

Lago Ohrid
http://youtu.be/aHYZwzQ2V5c

Sveti Naum
http://youtu.be/9dzVThvQdlk